O jurista Miguel Reale Júnior, 81, ex-ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), considera que o processo criminal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e militares acusados de tentativa de golpe de Estado, que será analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a partir desta semana, representa um passo decisivo para reparar a “ferida” aberta na democracia brasileira pelo 8 de Janeiro.
“É uma ferida que precisa ser curada, e a cura se faz com julgamento penal, assegurado o contraditório”, afirmou o professor aposentado de Direito Penal da USP, em entrevista à Folha de S.Paulo.
Lei usada no caso nasceu de proposta apresentada em 2002
A ação penal se baseia na Lei 14.197/2021, que definiu os crimes contra o Estado democrático de Direito e revogou a antiga Lei de Segurança Nacional. O texto aprovado pelo Congresso adotou como referência um anteprojeto redigido por comissão presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) José Dantas Cernicchiaro e apresentado por Reale Júnior em 2002.
Apesar de criticar a tramitação acelerada da matéria em 2021, o jurista considera positiva a substituição do antigo arcabouço legal, marcado pela “ideologia da Segurança Nacional” do regime militar, por dispositivos que preservam a ordem democrática. Para ele, dois artigos da lei — tentativa de abolição do Estado democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado — são suficientes para proteger as instituições.
Anistia “não corresponde ao sentimento brasileiro”
Reale Júnior rechaça propostas de anistia aos investigados pelos atos golpistas. “A anistia seria uma traição à democracia”, afirmou. Segundo ele, nenhuma das hipóteses clássicas — perda de relevância do fato ou transição de regimes — se aplica no caso brasileiro. “Os defensores da anistia não querem pacificação; querem impunidade”, disse, também criticando manobras da família Bolsonaro para buscar sanções junto ao ex-presidente norte-americano Donald Trump contra o STF.
Um único crime absorveria o outro
O ex-ministro defende que os acusados sejam condenados apenas por tentativa de golpe de Estado, tese também sustentada pelo ministro Luís Roberto Barroso nas ações referentes ao 8 de Janeiro. Para o jurista, o crime abrange o impedimento do funcionamento dos Poderes e, portanto, absorve a imputação de tentativa de abolição do Estado democrático.
Defesa de Bolsonaro e papel de Moraes
Questionado sobre a estratégia da defesa de Bolsonaro, que nega vínculo direto do ex-presidente com os fatos narrados pela Procuradoria-Geral da República (PGR), Reale Júnior afirmou ver “elementos capazes de contestar” essa alegação. Ele considera que conversas de Bolsonaro com comandantes militares, nas quais teria sugerido intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ou decretação de estado de sítio, configuram grave ameaça à ordem democrática.

Sobre críticas à condução do inquérito pelo ministro Alexandre de Moraes, o jurista lembrou que a 1ª Turma do STF já confirmou a competência do magistrado. “É o estilo dele, que veio do Ministério Público, mas não há impedimento”, avaliou.
Responsável por pedido de impeachment de Dilma
Reale Júnior foi um dos autores da denúncia que levou ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016 e chegou a protocolar, sem sucesso, pedido semelhante contra Bolsonaro após a CPI da Covid. Filiado ao PSDB por mais de 25 anos, ele declarou voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda no primeiro turno de 2022 para, segundo disse, “salvar o país do desastre” que, em sua visão, seria a reeleição de Bolsonaro.
Para o jurista, o julgamento que se inicia reforçará a necessidade de uma “democracia militante”, capaz de defender suas próprias bases. “A democracia não pode ser ingênua a ponto de conceder liberdade para quem quer destruir a liberdade”, concluiu.
Para acompanhar outras atualizações sobre política nacional, visite a página inicial do nosso site.
Com informações de Folha de S.Paulo