Inglaterra cria órgão regulador independente para fiscalizar finanças, vendas de clubes e participação de torcedores

Entrou em vigor nesta segunda-feira (21) a Lei de Governança do Futebol, que institui o Independent Football Regulator (IFR), primeiro órgão estatal encarregado de supervisionar toda a atividade econômica do futebol profissional na Inglaterra e no País de Gales. A medida encerra mais de dez anos de discussões políticas e confere ao novo regulador poderes diretos sobre clubes, proprietários, ligas e federações.
O IFR terá três frentes de atuação. A primeira envolve o controle financeiro, com análise detalhada das contas das equipes, avaliação de eventuais operações de compra e venda e possibilidade de vetar negócios considerados inadequados. Em situações extremas, o órgão poderá obrigar o atual dono a negociar o clube se caracterizada má administração.
A segunda competência diz respeito à distribuição de receitas de direitos de transmissão da Premier League para as divisões inferiores. Caso ligas e federações não alcancem consenso, o regulador poderá definir valores, prazos e condições dos repasses destinados a apoiar financeiramente os clubes menores em toda a pirâmide competitiva.
O terceiro eixo garante mecanismos formais de participação dos torcedores. Todas as sociedades anônimas deverão incluir no conselho um diretor não executivo independente, eleito por associações de torcedores reconhecidas pelo IFR. Mudanças que afetem identidade visual, nome, cores, estádio ou instalações só poderão avançar com aprovação da maioria dos fãs.
O órgão começa a operar de imediato. Dentro de 18 meses, apresentará um relatório sobre a situação da indústria local, indicando pontos críticos e instruções práticas a serem seguidas por dirigentes, investidores e entidades esportivas. A partir desse diagnóstico, o IFR passará a conceder ou recusar licenças anuais de funcionamento, vinculando a participação em competições ao cumprimento das exigências regulatórias.
Algumas atribuições repetem práticas que a Premier League já adota, como testes de proprietários e regras de fair play financeiro. Outras aprofundam iniciativas isoladas de determinados clubes, sobretudo na relação com torcedores. Para as organizações de fãs reunidas na Football Supporters Association (FSA), que congrega mais de 130 grupos, a autorregulação não era suficiente. A pressão dessas entidades motivou a transferência do tema para a esfera pública, quebrando o antigo tabu de não intervenção do Estado no futebol britânico.
A construção política do projeto envolveu partidos adversários. A conservadora Tracey Crouch liderou os estudos iniciais no governo anterior, enquanto a trabalhista Lisa Nandy revisou o texto e incorporou emendas sugeridas pelos torcedores no gabinete atual. O consenso bipartidário foi decisivo para superar resistências de proprietários e da própria Premier League.
No futebol inglês, clubes são empresas desde o começo do século XX, fato que sempre limitou a influência dos adeptos. Nas últimas décadas, supporters trusts compraram participações acionárias para ganhar espaço nas decisões, além de organizar protestos contra aumentos de ingressos, trocas de estádios ou venda a grupos rejeitados pela base de fãs.
Dois fatores recentes impulsionaram o apoio à criação do regulador. O mais visível foi o anúncio, em 2021, da European Super League, com Arsenal, Chelsea, Liverpool, Manchester City, Manchester United e Tottenham Hotspur entre os fundadores. A tentativa de abandonar a estrutura tradicional de competições enfrentou forte reação popular, parlamentar e da UEFA, e terminou abandonada após 48 horas.
O outro fator é a fragilidade financeira. Nos últimos 30 anos, ao menos 40 clubes ingleses declararam insolvência, casos de Portsmouth, Bury e Wigan, entre outros. Mesmo com regras de controle, testes de idoneidade e repasses da elite, empresas sem garantias financeiras ou envolvidas em práticas questionáveis continuaram adquirindo equipes históricas. A criação da Premier League em 1992 concentrou receitas na primeira divisão, ampliou a disparidade entre orçamentos e acentuou o risco de colapso a quem não dispõe de investidores dispostos a cobrir déficits recorrentes.
Para estruturar o IFR, o governo indicou David Kogan. O executivo participou de negociações de direitos de transmissão da Premier League, da English Football League, da Scottish Professional Football League e da Women’s Super League, além de ter atuado como assessor do Comitê Olímpico Internacional e da NFL. Embora não tenha experiência prévia como regulador, Kogan defende publicamente mecanismos robustos de sustentabilidade financeira e de envolvimento dos torcedores.
O estabelecimento de um órgão regulador independente na liga mais lucrativa do planeta inaugura nova etapa na gestão do futebol inglês e poderá influenciar debates semelhantes em outros países europeus.