Golpismo bolsonarista alia corporativismo militar a populismo digital e se distancia de rupturas anteriores

Especialistas em história política apontam que a tentativa de impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva após a eleição presidencial de 2022 apresentou traços inéditos no histórico das 14 rupturas ou tentativas de ruptura ocorridas na República brasileira. O episódio, que levou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e aliados a se tornarem réus, uniu o corporativismo de parte dos militares à mobilização em redes digitais impulsionada por um populismo de extrema direita de alcance global, num cenário em que as instituições democráticas mostraram maior resistência.
O historiador Carlos Fico, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lembra que todos os rompimentos institucionais desde 1889 tiveram participação de integrantes das Forças Armadas. Contudo, afirma que a motivação do grupo associado ao bolsonarismo difere das fases anteriores. Se na Proclamação da República e em levantes seguintes falava-se em “refundar” o regime, e se no período do tenentismo predominavam denúncias de fraude eleitoral, a partir de 1935 o pretexto dominante foi o combate ao comunismo. Já no caso recente, segundo Fico, a razão principal estaria na preservação de vantagens materiais, como a manutenção de regime previdenciário diferenciado e de milhares de cargos ocupados por militares no governo de Bolsonaro.
Para a historiadora Heloisa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais, a diferença também passa pela ausência de um projeto nacional. Na ditadura iniciada em 1964, os militares defendiam a construção de um complexo industrial e o fortalecimento da economia. No governo Bolsonaro, observa-se inexistência de um plano equivalente, prevalecendo a lógica de destruição de políticas pré-existentes. Ela identifica, porém, elementos recorrentes, como o anticomunismo – hoje tratado de forma caricata – e a mobilização religiosa, que migrou do domínio católico para o evangélico.
O ataque às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, que expôs a tentativa de reversão do resultado eleitoral, exemplificou esse novo formato de golpismo. Odilon Caldeira Neto, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Observatório da Extrema Direita, ressalta que a articulação ocorreu em plataformas digitais, o que forneceu aparência de movimento espontâneo. Muitos participantes se apresentavam como “o povo” e afirmavam agir sem estrutura organizacional, embora indícios indiquem planejamento robusto. Para o historiador, a radicalização de simpatizantes ocorreu não em partidos ou associações de bairro, mas em espaços virtuais onde narrativas conspiratórias se disseminaram com rapidez.
Os estudos de Caldeira também conectam o 8 de Janeiro a fenômenos internacionais, como a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021. Ambos os eventos teriam compartilhado métodos de mobilização online, apelos nacionalistas e discursos que rejeitam mediações institucionais. Essa circulação transnacional de táticas e símbolos reforça, segundo ele, a ideia de um populismo de extrema direita globalizado.
A cientista política Maria Celina d’Araújo, vinculada à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e ao CPDOC da Fundação Getulio Vargas, considera que o período da chamada República de 46 fornece o paralelo mais próximo, devido à relativa estabilidade democrática em vigor nas duas épocas. Porém, naquela fase as Forças Armadas estavam claramente divididas entre facções pró e contra o governo, enquanto hoje a posição dos comandos permanece pouco transparente. Para ela, esse é um dado novo na trajetória republicana: a sociedade desconhece a orientação política predominante entre os altos oficiais.
D’Araújo avalia que o fortalecimento do Estado de Direito foi decisivo para frustrar o complô recente. À diferença de momentos passados, não houve adesão institucional plena de atores políticos nem das Forças Armadas como corporação. O Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal, atuou de forma contínua para conter ameaças, e o sistema de freios e contrapesos criou ambiente desfavorável ao êxito golpista.
A robustez das instituições também se reflete no ineditismo de militares responderem judicialmente por conspiração contra a ordem constitucional. Segundo Carlos Fico, é a primeira vez que representantes fardados se tornam réus por tentativa de golpe, o que sinaliza avanço em relação a episódios em que ações semelhantes ficaram sem responsabilização legal.
Os acadêmicos convergem na conclusão de que o golpismo bolsonarista mantém raízes históricas, mas combina três fatores que o distinguem: o objetivo de proteger interesses corporativos dos militares, a mobilização em rede sustentada por um populismo de extrema direita interconectado internacionalmente e a existência de instituições mais sólidas que dificultaram a quebra da ordem democrática. A investigação em curso no Supremo Tribunal Federal e a eventual condenação dos envolvidos tendem a marcar um desfecho inédito na longa lista de aventuras autoritárias que pontuaram a República.